O uso de inteligência artificial generativa para responder perguntas simples sobre a lei, redigir documentos e dar os primeiros atendimentos aos clientes deixou de ser ficção para se tornar realidade. Não estamos falando de mais um capítulo do desenho dos Jetsons, mas da realidade, com experimentos feitos por grande bancas de advocacia da Europa, como o escritório Allen & Overy com sede no Reino Unido.
De acordo com David Wakeling, chefe de inovação de mercados do escritório, após o sucesso no experimento, o escritório firmou parceria para usar a ferramente de IA de forma mais ampla em toda a empresa. Agora, um em cada quadro advogados da banca usa a plataforma todos os dias, com 80% dos seus colaboradores usando ela pelo menos uma vez por mês.
Não foi um caso isolado o ramo do direito estar associado a uma perda de postos de trabalho nos próximos anos, chegando a mais 40% segundo recente relatório do Banco Goldman Sachs, assunto que tratamos aqui no Blog. Não obstante, o tema está em pauta há muito tempo, como nesta matéria de 2019 da Revista Forbes ou neste artigo de 2021 do The Convesation.
Diante do inevitável uso das ferramentas para agilizar os procedimentos dentro dos escritórios, a pergunta que fica é relativa a como um sistema judiciário lento, como o brasileiro, será impactado por um possível abarrotamento de ações?
Vamos pegar como referência um caso rotineiro, onde escritórios especializados em cobranças de dívidas – um área onde pessoas comuns detém demandas de baixo valor e baixo custo – usem tais ferramentas para agilizar seus procedimentos internos.
Estaremos diante de uma situação que os tribunais, lamentavelmente, estão totalmente despreparados para um futuro onde um chatbot pode ser um “arquivador” de um alto voluma de informações, realizando aconselhamentos jurídicos em tempo real.
Adicione a isso o fato de um futuro incerto, onde muitas empresas estão indo a falência diante da forte crise econômica pós pandemia e os empregos, se mostram escassos. Ademais, novas ferramentas de busca de ativos trazem novidades para as execuções judiciais, um alento ao desonroso lema do “ganha mais não leva”, levando os operadores do direito a confiar na execução e claro, aumentar o número de demandas nos tribunais.
É um alerta do que acontece quando o mundo muda e os tribunais não se adaptam. Muitos escritórios que muita demandas de baixo valor, muitas vezes arquivadas em massa ou com pouca movimentação processuais, terão ferramentas para tocar os processos com facilidade e lotar cada vez mais os tribunais.
De acordo com o CNJ, em 2021 o Poder Judiciário brasileiro teve 26,9 milhões de processos concluídos, uma expansão de 11.1% casos solucionados se comparado ao ano de 2020, porém, o ingresso de novas ações havia sido de 27,7 milhões, mostrando uma necessidade de melhora na agilidade dos procedimentos.
O uso de IA é realidade em muitos tribunais
A primeira fase do relatório da pesquisa Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, produzido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getulio Vargas (CIAPJ/FGV), sob a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, mostrou que cerca de metade dos tribunais no país tem projetos de inteligência artificial em desenvolvimento ou operantes.
Na segunda fase do relatório concluída em Abril de 2022, a conclusão foi que existiam um grande uso dos algoritmos, porém fora do contexto jurídico, com foco na mineração de textos. Tal conclusão demonstra um receio do judiciário na modernização das suas ferramentas, o que é claro, necessita um grande trabalho de proteção de dados, estruturação de procedimentos e automatização dos fluxos de trabalho que envolvam uma grande quantidade de dados.
Um advogado robô que nunca dorme
Pense sobre esse estado de coisas por muito tempo e quase todas as aplicações de grandes modelos de linguagem nos tribunais se tornam um problema de volume que o judiciário não está preparado para lidar.
No momento, o ChatGPT pode gerar uma carta de despejo meio decente, ou demanda de cobrança de dívidas, que pode ser tudo o que alguém precisa para forçar uma sobrecarga de demandas.
A partir daí, é fácil ver como grandes modelos de linguagem podem ajudar os poderosos a usar o sistema legal como um facilitador. Hoje falamos de casos de dívidas de pequenas causas mas amanhã, podemos estar diante de táticas de despejo agressivas e enganosas de proprietários corporativos. No dia seguinte, outros tipos de demandas que afetam a coletividade, muitas delas – como já é realidade nos EUA – organizadas por meio de crowdsourcing.
Mas também vejamos um cenário otimista, onde pessoas comuns que não conseguem encontrar ajuda de advogados obtêm ajuda de chatbots. Todos os dias, em todos os estados, os tribunais são visitados por pessoas que não podem acessar ou pagar advogados, que não sentem que o sistema jurídico foi construído para eles, que sentem que seus problemas são intratáveis e seus direitos inatingíveis.
A realidade é que as pessoas usarão ferramentas como o ChatGPT para obter ajuda legal porque não podem obter ajuda em nenhum outro lugar. Talvez funcione, e os chatbots ajudem as pessoas a se sentirem mais empoderadas e confiantes para ir ao tribunal. Talvez a ferramenta certa, implantada da maneira certa, ajude as pessoas sem advogados a superar todos os obstáculos processuais e evitar todas as possíveis armadilhas que surgem ao abrir e defender processos judiciais.
O presente e o futuro
O fato é que a preparação para o futuro não requer investimentos caros em tecnologia de ponta com longos prazos. Mudanças básicas no funcionamento dos tribunais podem ter um grande impacto para a coletividade, e ajudar na finalidade de Justiça, termo que vem perdendo força diante dos altos volumes de demandas.
Hoje todo o sistema ainda dependem de arquivamento de alto volume de PDF’s básicos, o que acaba ainda colocando o ônus sobre funcionários que precisam analisar documentos de uma forma mais agilizada que o antigo modelo de processos físicos, porém, muito longe das novas ferramentas que trabalham com dados estruturados.
Falando na forma mais ampla, a adoção de dados pode facilitar oportunidades de aprendizado nas quais os tribunais historicamente não investiram bem: os tribunais poderiam entender melhor as necessidades legais das partes, triar os casos e ser mais responsivos às mudanças nas tendências de arquivamento; os pesquisadores poderiam construir uma imagem mais completa de quais intervenções legais realmente funcionam e onde a ajuda é ou não eficaz.
Acima de tudo, os tribunais, os formuladores de políticas e a profissão jurídica que eles supervisionam devem ver o aumento do aconselhamento baseado em software pelo que ele é: um clamor por uma reforma sistêmica que ajude a agilizar os procedimentos.
Se o software continuar a ser uma fonte de ajuda e conhecimento jurídico, os formuladores de políticas podem ajudar a articular os deveres que os fabricantes de software de assistência jurídica devem a seus usuários, desde ajudar a minimizar erros e enganos até proteger os dados sobre a busca de alguém por ajuda.